Os governantes
do regime militar diziam que vivíamos numa ilha de paz e prosperidade de um
mundo conturbado. Os governantes atuais dizem coisas semelhantes. Naquela época
não estávamos em nenhuma ilha, mas num descampado e com o traseiro à mostra. O
“predestinado” reconstrói as imagens e começamos a sentir estarmos de volta ao
descampado e de traseiro à mostra.
Davi e Golias
07 de agosto de 2011 | 0h 00
A propósito do atual dilema americano, a secretária de Estado, Hillary
Clinton, disse que pela primeira vez em muito tempo não havia um abismo tão
grande entre poder, economia e sociedade. Pode parecer banal, mas não é: nos
Estados Unidos, o "ideal americano" dava solidez a um caminho em
comum para o país. Havia tensões, tendências mais progressistas chocavam-se com
outras mais conservadoras, o grande business sempre quis controlar mais de
perto o governo, os governos ora se inclinavam para atender aos reclamos das
maiorias, ora assumiam a cara mais circunspecta de quem ouve as ponderações da
ordem, da econômica em primeiro lugar. Mas, bem ou mal, liberdade, democracia,
prosperidade e ação pública caminhavam mais ou menos em conjunto.
E agora?, poderia perguntar, perplexa, a secretária de Estado. Agora,
digo eu, parece que as classes médias e os mais pobres querem gasto público
maior e emprego mais abundante, os conservadores querem ortodoxia fiscal sem
aumento de impostos, os muito ricos pouco se incomodam com o gasto social
reduzido, desde que a propriedade de cada um continue intocável. No meio de
tudo isso, a crise provocada pelo cassino financeiro surgiu como um terremoto.
Logo depois veio o marasmo da semiestagnação e, pior ainda, se desenha o que há
pouco era impensável, a moratória do país mais rico do mundo! Por trás da
peleja econômica corre a outra, mais profunda, a do poder: o Tea Party - os
ultrarreacionários do Partido Republicano - levou o governo Obama às cordas. A
agenda política, mesmo depois de "resolvida" a questão do
endividamento, passou a ser ditada por eles: onde e quanto cortar mais no orçamento
de um país que clama por muletas para reavivar a economia.
Na Europa as coisas não andam melhores. Cada solavanco da economia
americana aumenta o contágio, essa doença internética: as taxas de juros
cobrados dos países ultraendividados vão às nuvens. A rua agita-se, não faltam
movimentos dos "Indignados" que veem o povo sofrer as agruras do
desemprego e da desesperança e ainda ser cobrado para que as contas se ajustem.
E, naturalmente, como nos Estados Unidos, os que mais têm e os que mais
especularam ou esbanjaram (inclusive governantes imprevidentes) balançam a
poeira e querem dar a volta por cima. Esperam que mais aperto, mais rigidez no
gasto público e menos salários resolvam o impasse. Não se estão dando conta de
que a cada xis meses uma nova tormenta balança os equilíbrios instáveis
alcançados. É como se daqui a 30 anos os historiadores olhassem para trás e
dissessem: ah, bom, a Grande Crise dos Derivativos começou em 2007/2008, foi
mudando de cara, mas prosseguiu até que novas formas de produzir e de
distribuir o poder começaram a dar sinais de vida lá por 2015/2020...
E nós aqui, nesta periferia gloriosa, a quantas andamos? Longe do olho do
furacão, cantamos glória pelo que fizemos, pelo que de errado os outros fizeram
e pelo que não fizemos, mas, pensamos, pouco importa, o vendaval do mundo
varreu a riqueza de uma parte do globo para outra e nos beneficiou. Será que é
assim mesmo? Será que a proeza de evitar as ondas do tsunami impede que a
malignidade do resto do mundo nos alcance? Tenho minhas dúvidas. Falta-nos,
como impuseram os reacionários americanos a Obama, uma agenda, mas que seja
nova, e não a desgastada do "clube do chá" americano. A nova agenda
existe, está exposta cotidianamente pela mídia e não é propriedade de um partido
ou de um governo. Mas onde está a argamassa, como o antigo ideal americano,
para conter as divergências, o choque de interesses, e guiar-nos para um
patamar mais seguro, mais próspero e mais coeso como nação?
Mal comparando, a presidenta Dilma está aprisionada num dilema do gênero
daquele que agarrou Obama. Só que, se no caso americano a crise apareceu como
econômica para depois se tornar política, em nosso caso ela surgiu como
política, mas poderá tornar-se econômica. Explico-me: a presidenta é herdeira
de um Sistema, como dizíamos no período do autoritarismo militar. Este funciona
solidificando interesses do grande capital, das estatais, dos fundos de pensão,
dos sindicatos e de um conjunto desordenado de atores políticos que passaram a
se legitimar como se expressassem um presidencialismo de coalizão no qual se
troca governabilidade por favores, cargos e tudo o mais que se junta a isso.
Essa tendência não é nova. Ela se foi constituindo à medida que o
capitalismo burocrático (ou de Estado, ou como se queira qualificá-lo) amealhou
apoios amplos entre sindicalistas, funcionários e empresários sedentos por
contratos e passou a conviver com o capitalismo de mercado, mais competitivo.
Na onda do crescimento econômico as acomodações foram-se tornando mais fáceis,
tanto entre interesses econômicos quanto políticos (incluindo-se neles os
"fisiológicos" e a corrupção). No início parecia fenômeno normal das
épocas de prosperidade capitalista, que seria passageiro. Pouco a pouco se foi
vendo que era mais do que isso: cada parte do Sistema precisa da outra para
funcionar e o próprio Sistema necessita da anuência dos cooptáveis pelas bolsas
e por empregos de baixo salários e precisa de símbolos e de voz. Esta veio com
o "predestinado": o lulismo anestesiou qualquer crítica não só ao
Sistema, mas a suas partes constitutivas.
É neste ponto que o bicho pega. A presidenta é menos leniente com certas
práticas condenáveis do Sistema. Entretanto, quando começa a fazer uma faxina,
quebram-se as peças da engrenagem toda. Sem leniências e cumplicidades entre as
várias partes, como obter apoios para a agenda necessária à modernização do
País? E sem ela, como fazer frente à concorrência da China, à relativa
desindustrialização, ou melhor, "desprodutividade" da economia, e
como arbitrar entre interesses legítimos ou não dos que precisam de mais apoio
do governo, advenham eles de setores populares ou empresariais? É cedo para
prever o curso dessa história, que apenas começa. Mas não há dúvidas de que
para se desfazer da herança recebida será preciso não só "vontade
política", como, o que é tão difícil quanto, refazer os sistemas de
alianças. É luta para Davis e, no caso, Golias é pai de Davi.
SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA