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Acessado em 02/09/2012.
Herança pesada, por Fernando Henrique
Cardoso
Males
morais e prejuízos materiais sensíveis para o futuro da nação foram deixados
pelos oito anos de governo Lula para a presidente Dilma Rousseff
Fernando
Henrique Cardoso
A presidenta Dilma Rousseff recebeu
uma herança pesada de seu antecessor. Obviamente, ninguém é responsável pela
maré negativa da economia internacional, nem ela nem o antecessor. Mas há muito
mais do que só o infortúnio dos ciclos do capitalismo.
Comecemos pelo mais óbvio: a crise
moral. Nem bem completado um ano de governo, e lá se foram oito ministros, sete
dos quais por suspeitas de corrupção. Pode-se alegar que quem nomeia ministros
deve saber o que faz. Sem dúvidas, mas há circunstâncias. No entanto, como o
antecessor jogou papel eleitoral decisivo, seria difícil recusar de plano seus
afilhados. Suspeitas, antes de se materializarem em indícios, são frágeis
diante da obsessão por formar maiorias hegemônicas, enfermidade petista
incurável.
Mas não foi só isso: o mensalão é
outra dor de cabeça. De tal desvio de conduta, a presidenta passou longe e
continua se distanciando. Mas seu partido não tem jeito. Invoca a prática de um
delito para encobertar outro: o dinheiro desviado seria “apenas” para o caixa dois
eleitoral, como disse Lula em tenebrosa entrevista dada em Paris, versão
recém-reiterada ao “New York Times”. Pouco a pouco, vai-se formando o consenso
jurídico, de resto já formado na sociedade, de que desviar dinheiro é crime,
tanto para caixa dois como para comprar apoio político no Congresso. Houve
mesmo busca de hegemonia a peso de ouro alheio.
Mas não foi só isso que Lula deixou
como herança à sucessora. Nos anos de bonança, em vez de aproveitar as taxas
razoáveis de crescimento para tentar aumentar a poupança pública e investir no
que é necessário para dar continuidade ao crescimento produtivo, preferiu
governar ao sabor da popularidade. Aumentou os salários e expandiu o crédito,
medidas que, se acompanhadas de outras, seriam positivas.
Deixou de lado as reformas
politicamente custosas: não enfrentou as questões regulatórias para acelerar as
parcerias público-privadas e retomar as concessões de certos serviços públicos.
A despeito da abundância de recursos fiscais, deixou de racionalizar as práticas
tributárias, num momento em que a eliminação de impostos poderia se fazer sem
consequências negativas: a oposição conseguiu suprimir a CPMF, cortando R$ 50
bilhões de impostos, e a derrama continuou impávida.
É longa a lista do que faltou fazer
quando seria mais fácil. Na questão previdenciária, o único “avanço” não se
concretizou: a criação de uma previdência complementar para os funcionários
públicos que viessem a ingressar depois da reforma. A medida foi aprovada, mas
sua consecução dependia de lei subsequente, para regulamentar os fundos
suplementares, que nunca foi aprovada.
As centenas de milhares de
recém-ingressados no serviço público na era lulista continuaram a beneficiar-se
da regra anterior. Foi preciso que novo passo fosse dado pelo governo atual
para reduzir, no futuro, o déficit da Previdência.
Que dizer, então, de modificações
para flexibilizar a legislação trabalhista e incentivar o emprego formal? A
proposta enviada pelo meu governo, com esse objetivo, embora assegurando todos
os direitos trabalhistas previstos na Constituição, foi retirada do Senado pelo
governo Lula em 2003. Agora é o próprio Sindicato Metalúrgico de São Bernardo
do Campo que pede a mesma coisa...
Mas o “hegemonismo” e a popularidade
à custa do futuro forçaram outro caminho: o dos “projetos de impacto” como
certos períodos do autoritarismo militar tanto prezaram. Projetos que não saem
do papel ou, quando saem, custam caríssimo ao Tesouro e têm utilidade relativa.
O exemplo clássico foi a formação a
fórceps de estaleiros nacionais para produzir navios-tanque para a Petrobras
(pagos, naturalmente, pelos contribuintes, seja através do BNDES, seja pelos
altos preços desembolsados pela Petrobrás). Depois do lançamento ao mar do
primeiro navio, com fanfarras e discursos presidenciais, passaram-se meses para
descobrir-se que o custo não fez jus a tanta louvação.
Que dizer dos atrasos da transposição
do São Francisco ou da Transnordestina, ou ainda da fábrica de diesel à base de
mamona? Tudo relegado aos restos a pagar do esquecimento.
O que mais pesa como herança é a
desorientação da política energética. Calemos sobre as usinas movidas “a fio d
água”, cuja eletricidade para viabilizar o empreendimento terá de ser vendida
como se a produção fosse firme o ano inteiro e não sazonal. Foi preciso
substituir o companheiro que dirigia a Petrobras para que o país descobrisse o
que o mercado já sabia, havendo reduzido quase pela metade o valor da empresa.
O custo da refinaria de Pernambuco
será dez vezes maior do que o previsto; há mais três refinarias prometidas que
deverão ser postergadas ad infinitum. O preço da gasolina, controlado pelo
governo, não é compatível com os esforços de capitalização da Petrobras. Como
consequência de seu barateamento forçado — que ajuda a política de expansão ilimitada
de carros com a coorte de congestionamentos e poluição —, a produção de etanol
se desorganizou a tal ponto que estamos importando etanol de milho dos Estados
Unidos!
Com isso tudo e apesar de estarmos
gastando mais divisas do que antes com a importação de óleo, o presidente Lula
não se pejou em ser fotografado com as mãos lambuzadas de petróleo para
proclamar a autossuficiência de produção, no exato momento em que a
produtividade da extração se reduzia.
No rosário de desatinos, os poços
secos, ocorrência normal nesse tipo de exploração, deixaram de ser lançados
como prejuízo, para que o país continuasse embevecido com as riquezas do
pré-sal, que só se materializarão quando a tecnologia permitir que o óleo seja
extraído a preços competitivos, que poderão se tornar difíceis com as novas
tecnologias de extração de gás e óleo dos americanos.
É pesada como chumbo a herança desse
estilo bombástico de governar que esconde males morais e prejuízos materiais
sensíveis para o futuro da nação.
Fernando
Henrique Cardoso é ex-presidente da República