A distância social e o jogo de prestígio
Muito interessante o artigo de Antônio Fernando Pinheiro
Pedro sobre o título de doutor. Assunto
que me leva a ler, pois além de escrever muito bem, os seus textos prendem a
atenção. Como Fernando sabe, na minha profissão os meus entrevistados são, na
maioria, gente simples, índios, pessoas do mundo rural e também doutores de
pequenas comunidades. Muitos advogados. Era comum usarem o doutor como prenome.
Costumavam tirar sarro do pesquisador. Não era para menos, depois de prosear
com uma porção de caboclos e ia conversar com um doutor.
Estas considerações não são contestatórias, mas algumas
informações decorrentes da minha prática de pesquisa de campo que por várias
vezes me levou a situações que me mostraram o tratamento de doutor como uma
forma de distância social.
Criticam muito dos doutores acadêmicos, mas eles são
professores assistentes. Existe uma “escadinha”: auxiliar de ensino, professor
assistente, professor assistente doutor, professor livre-docente, professor
adjunto e professor titular. Na Unesp, por falta de gente titulada (no meu tempo,
não sei agora), o professor livre-docente é logo “promovido” a professor
adjunto. Quando um professor faz a sua livre-docência o seu tratamento é de
professor doutor.
Eu aguentei os primeiros sarros dos doutores e resolvi fazer
um “experimento”. Tinha um cartão de visita com o meu nome e sob ele a palavra ANTROPÓLOGO. Mantive este cartão e fiz outro, colocando “Prof.
Dr.” antes do nome. Quando era bem tratado oferecia o cartão antigo e quando
alguém tirava sarro dava o cartão novo. Nas visitas seguintes passava a ser bem
tratado.
Comecei a fazer pesquisa de campo quando ainda era somente
graduado. Como precisamos dos entrevistados éramos obrigados ao ouvir verdadeiras
“aulas”. Ouvia tudo aquilo, pois se fossemos mandar a pessoas para aquele lugar
que chega até a ponta da língua, a pesquisa pode parar por falta de entrevistados.
Gente “esquentada” não pode fazer pesquisa de campo.
Estas experiências tornam-nos sensíveis a esta
questão. Não levamo-las para o nível social, mas como um fenômeno de relações sociais.
Houve um caso de um juiz processou o porteiro do seu condomínio porque não
recebeu o tratamento de doutor. De acordo com o juiz que deu a sentença, “’doutor’ não é forma de tratamento, e sim título
acadêmico utilizado apenas quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga
merecedora de um doutoramento. O título é dado apenas às pessoas que cumpriram
tal exigência e, mesmo assim, no meio universitário”. Continuou na sua sentença
“...que o tratamento cerimonioso é reservado a círculos fechados da diplomacia,
clero, governo, Judiciário e meio acadêmico, mas na relação social não há ‘ritual litúrgico’ a ser obedecido
(grifo meu)”.
Quando fui para a Amazônia dirigir
um Campus Avançado do Projeto Rondon assumi um cargo de professor. Assim era
tratado. Passavam outros professores por lá por períodos de uns 15 ou 20 dias. Era
o único professor “de fora” de
permanência efetiva na comunidade. Passavam muitos “doutores” ligados aos
governos federal e estadual, pois Humaitá era uma das sete comunidades de apoio
da Transamazônica e próxima a ela havia o cruzamento da Transamazônica com a
Rodovia Porto Velho Manaus. Os “doutores locais” (o Juiz, os médicos) tiram um
relacionamento formal com a população local e quando tinham era de liderança.
Por serem “doutores”.
Nas reuniões da tardinha, no bar
da beira do rio havia a mesa dos doutores e sempre havia gente próxima da mesa
para ouvir as conversar e se tornar assunto de conversa na cidade. Pela manhã,
por volta das cinco horas da manhã, ainda escuro, os barqueiros, estivadores,
trabalhadores braçais da prefeitura e alguns moradores de prestígio da cidade, mais
o prefeito, o presidente da Câmara e algumas outras pessoas prestigiadas, reuniam-se
nas escadarias do porto, tomavam café
oferecidos pelo Venturinha, proprietário do café na parte alta da escadaria. Muitas
conversas ouvidas das conversas dos
doutores na tarde anterior era comentada da D.I.V.A.(Departamento de Investigação
da Vida Alheia), como ironicamente os seus membros chamavam este encontro
matinal. Eu era um dos membros deste encontro.
O professor, seja os das primeiras
letras, seja os dos mais altos cargos acadêmicos, é professor. A legislação
educacional define o processo de formação do professor, mas na longínqua
Amazônia de então a maioria dos professores era formada por pessoas que, em boa
parte tinha somente as quatro séries iniciais do hoje chamado curso fundamental
e as suas moradias, casas de palafita, também eram a escola. Mas eram
professores. Os professores “leigos”. E eu também era professor, mas um
professor “do Sul” e de formação universitária.
Distância social é um conceito sociológico
que mede a aproximação ou o distanciamento de posições sociais, ou status social (conjunto de normas ou
regras que termina a posição que o individuo ocupa numa sociedade). Por
exemplo, o porteiro, o gari, o juiz, o advogado, o médico, o motorista de
ônibus, o professor, etc.
Outro dia assisti a um vídeo de
uma discussão no Senado da República que mostrou uma discussão cujo foco era a “medição”
do distanciamento social. Uma Senadora mandou que a advogada favorável a
impeachment da Presidente afastada ficasse calada porque não era senadora
portando sem alguns privilégios dos parlamentares. A advogada deu uma resposta
acrescentando outros privilégios que lhe dava o direito de falar, direitos da
sua função.
Manuel Diegues Jr. em um de seu
artigos ensina-nos de que os seus filhos homens dos proprietários coloniais constituíam-se
nos nexos com o Estado, claro que positivamente com o governo. O mais velho era
o seu herdeiro na administração das suas propriedades. O segundo padre, numa
Igreja parte do Estado, onde o poder rivalizava com muita força com o poder
material, e assim preservando a sua potestade. O terceiro filho advogado para
exercer cargos na administração colonial e o quarto filho militar. A igreja
perdeu muito do seu poder, mas os operadores do direito aliam esta característica
a um jogo de conceitos e valores da justiça que colocam sempre em evidência o
seu poder em vários setores da sociedade.
O título de “doutor” que lá no
início falei do seu uso como prenome, faz desaparecer o nome em favor da
categoria profissional. O mesmo acontece com o médico. São os “doutores”.
Disse o juiz que deu a sentença ao
seu colega que processou o porteiro do condomínio que “doutor não é forma de
tratamento, e sim título acadêmico”. E aqui entra o Estado: o título acadêmico
de doutor foi regulamentado e os de doutor para quem fez determinados cursos de
graduação não foram. Mas por costume se tornou uma forma cerimoniosa impositiva.
E sempre haverá espaço para discussão. E ser chamado de doutor agrada ao ego,
seja o de origem acadêmica, seja os de cursos de origem nobre.
O jogo de prestígio continua...