quinta-feira, 15 de maio de 2014

Desta vez Lula está com a razão

É fácil entender FHC porque ele mais escreve do que fala; registra as suas ideias. Mas nem sempre ele é entendido porque avulta o analfabetismo funcional. Mas este é outro assunto, para outro momento. Quanto a Lula é difícil de entender as suas ideias porque não escreve e a cada discurso expressa uma ideia. E como, tal como o grande chefe, que ninguém o contesta, não se importa com a coerência da sequência das suas ideias em suas exposições.

A militância e os escritores de pena alugada se exasperaram com a entrevista de Ney Matogrosso em Portugal, na mesma emissora que Lula, semanas antes, havia dado uma entrevista. Foram declarações diametralmente opostas. Como falei acima, Lula é incontestável, ninguém contestou a descrição do Brasil que só existe na cabeça de Lula. E ninguém colocou em dúvida a sua capacidade de análise política, ao contrário de Ney Matogrosso, que passou a ser apresentado como um artista medíocre comparado a outros artistas como Chico Buarque e Gilberto Gil. Estes dois artistas são alinhados à troika petista, diferente de Ney Matogrosso. Logo, foi duramente atacado pela militância. E também pelos para-militantes. Todos eles, no entanto, são cidadãos com direito de expor as suas ideias, que poderão ser consideradas bobagens, só que umas são a favor do grupo que está no poder e o outro contra. Como a militância é aguerrida e sustentada ideologicamente - e talvez materialmente – pelo grupo que está no poder, é fácil prever como serão (e como foram) os ataques.

Estes comentários foram inspirados no artigo de Aloisio de Toledo César, “Desta vez Lula está com a razão”. Ou seja, o julgamento do mensalão foi político, 80% político, pois se não fosse ele estaria na Papuda, atrás das grades, junto aos seus companheiros e homens de confiança. O autor do artigo sabe o que fala, pois é juiz aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,desta-vez-lula-esta-com-a-razao,1160447,0.htm . Acessado em 15/05/2014.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Padim Ciço modernoso



Há um caráter religioso na política brasileira.  Isto ficou evidente a partir de 2003, mas já se notava sinais disto com o aparecimento de Lula na mídia lá pelos anos sessenta. O filme biográfico de Lula deixou isto muito claro. Até o Lula real acreditou no Lula mitológico. Construiu-se uma versão moderna – ou modernosa – do Padre Cícero, o Padim Ciço.

Até hoje, passados dois mil anos, pouco – ou quase nada – se sabe sobre a figura histórica de Jesus Cristo e pouca coisa se sabe da vida (concreta) do Padre Cícero além das descrições mitológicas. A vida de Lula segue o mesmo caminho, o caminho do bem-aventurado e os seus seguidores (a militância lulopetista), os seus beatos. Alguns deles estão fazendo retiro na Papuda, mas o número ainda é muito grande, nas mídias escrita e digital prontos para a defesa do seu bem-aventurado.

Foi nisto que se transformou a política brasileira, uma mistura de Nosso Lar (“vida” de André Luiz) e os cordéis de Joazeiro do Norte, enfim, uma visão modernosa de Padim Ciço.

Pode-se falar e criticar até Dilma, mas há uma interdição para se criticar o Paim, digo, Lula. Critica-se a sacristã, mas não se toque no bem-aventurado. A própria igreja está clamando o “Volta Padim”, digo, “Volta Lula”.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Bóia e cobra

São Paulo é, em certos aspectos, uma “cidade de departamentos”, com as suas ruas especializadas. Temos a 25 de março, a Maria Marcolina, a Oriente, a São Caetano (rua das noivas), José Paulino, etc. Temos a Santa Efigênia especializada em artigos eletrônicos, a Florêncio de Abreu e  máquinas e ferramentas, a Paulista em instituições financeiras.

Outro dia fui á Florêncio de Abreu. Ela começa no Largo São Bento, onde está o Mosteiro com o mesmo nome. A Ford do Brasil, quando inaugurada em 1919 instalou-se num armazém de Florêncio. Não sei em que altura. Quando estava na faculdade, na Vila Buarque, ia a pé até o Largo São Bento pegar o “elétrico” (tróleibus, para os mais jovens), que percorria a Florêncio até o seu final. Fazia um tempão que não andava por ali. Como teria que ir lá numa loja bem no meio da rua, saltei do metrô no Largo São Bento, num extremo da Florêncio e o peguei de volta na estação Luz, que tem um acesso no final da rua.  E claro, levei a máquina fotográfica. Uma compacta, mais barata que um celular, é claro. Queria fotografar. A maioria dos prédios construída no primeiro quartel do século passado estava lá. Claro que havia muitos prédios novos, mas em número pequeno em relação às construções antigas.

A Casa da Bóia também estava lá. Além das recordações de quase meio século, recordei de um fato associado. Uma minha orientanda desenvolvia o seu doutorado sobre educação indígena numa aldeia guarani do interior paulista. Uma professora da escola mostrou para ela a redação de um aluno cujo tema era bóia. Enquanto a classe falou sobre bóia, este aluno discorreu sobre cobra. A orientanda começou a desenvolver uma bela teoria psicológica da relação entre bóia e cobra, com a ajuda da professora e da orientadora. As conclusões eram muito interessantes, mas ficaram frustadas quando eu lhes disse que o aluno guarani não ouviu direito e entendeu mbói, cobra em guarani. Quem viu o meu sorriso defronte a Casa da Bóia deve ter pensado em alguma caduquice de minha parte. Rindo sozinho. 

sábado, 10 de maio de 2014

Comentários sobre a pornografia[1]


Costuma-se falar, com um alto grau de ironia, que a pornografia é o erotismo do outro. Quando ouvimos tal afirmação é sinal que estamos caminhando pelas trilhas da moral. Tentar definir algo envolto por idéias de moral é muito difícil pela, sua subjetividade. Poderemos dizer que pornografia é tudo aquilo que ofende a moral sexual e, considerando a moral sexual uma das morais mais rígidas, a pornografia é a faceta mais ampla da sexualidade.

Há duas décadas um juiz apreendeu uma edição de uma revista sexy que aparecia na capa uma mulher com o dorso nu, com a alegação de que seios à mostra eram pornográficos. Ordenou o acondicionamento das revistas em envelopes pardos. Este fato ilustra a compreensão da pornografia como algo exposto.

Uma maneira para se compreender de que pornografia é uma sexualidade exposta, num ponto extremo desta linha moral, estariam todas as formas de proibições. O erotismo, nesta imagem, estaria no meio da linha em direção da pornografia.  Em outras palavras, a moral aceita e a contestação à moral. Todos os fatos que acontecem em sociedade são binários e de oposição. O que seria do bem sem o mal? Do bom sem o ruim? De Deus sem o diabo? Dos anjos não fossem os íncubos e súcubos? Da moral sexual sem a pornografia? Quanto mais acerbada a moral sexual, mais floresce a pornografia.

Quando se fala em pornografia reduzimo-la ao sexo exposto, escancarado, como uma agressão. Se percorrermos a história veremos que a agressão é hora moral, ora política, ora as duas. Terá a forma de agressão pessoal na media em que estivermos envolvidos no contexto em que ela atinge.

A invenção da tipografia se tornou uma aliada à difusão da pornografia. Pietro Aretino (1492-1556) é considerado o primeiro pornólogo. Em Cartas sobre os Sonetos escreveu: "Diverti-me [...] escrevendo os sonetos que podeis ver [...] sob cada pintura. A indecente memória deles, eu a dedico a todos os hipócritas, pois não tenho mais paciência para as suas mesquinhas censuras, para o seu sujo costume de dizer aos olhos que não podem ver o que mais os deleita [...] Que mal haverá em contemplar um homem a possuir uma mulher? Serão os mesmos animais mais livres do que nós? Não é mister ocultar órgãos que engendraram tantas criaturas belas. Seria antes mister ocultar nossas mãos, que nos dissipam o dinheiro, fazem juramentos falsos, emprestam a juros usurários, torturam a alma, ferem e matam" (http://www.germinaliteratura.com.br/erot_agopa.htm). Uma crítica política e uma crítica moral.

“No século XVIII a França foi para toda a Europa o modelo da arte de amar e mais precisamente da arte de gozar” (Alexandrian. História da Literatura Erótica. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. P.161). Mas também foi o século que esta literatura sofreu perseguições, entrando no rol dos livros proibidos.  A proibição abrangia os livros que tratavam “da libertinagem” praticada  por trás dos muros dos palácios e dos castelos pela aristocracia e pelo clero. Estes livros circulavam na França sob o rótulo de livros filosóficos e eram escritos com o objetivo de desacreditar estas duas categorias nos tempos que antecederam a Revolução Francesa (Robert Darnton Edição e Sedição: o universo da literatura clandestina do século XVIII. São Paulo: Companhia da Letras, 1992).

Muitos dos livros proibidos tornaram-se partes da literatura erótica e muitas gravuras, hoje, fazem parte do acervo da arte erótica. Um exemplo brasileiro sugestivo são os Catecismos de Carlos Zéfiro. Com este nome um funcionário público desenhava historias em quadrinhos e sacanagens, que eram vendidas para um editor. Carlos Zéfiro era um apelido para escondê-lo da rigidez do estatuto de funcionários que poderia puni-lo com a demissão. Ele foi descoberto no ano anterior à sua morte. Antes de ele ser descoberto as suas historietas já faziam parte da literatura erótica e os seus desenhos, artes eróticas.

A distância ou proximidade da pornografia da literatura erótica ou da arte erótica, varia de acordo com os valores do momento histórico em que isto acontece e que permitem a aceitação naquelas novas categorias.

Quando fazia a minha pesquisa na qual analisava a relação da pornografia com a moral sexual, eu me perguntava: porque a Playboy é considerada uma revista erótica e a Private (uma revista do mercado pornográfico, na época) não é? O texto, as fotos, a editora e os leitores da revista Playboy davam-lhe esta classificação como erótica, o que não acontecia com a outra. Subjetivamente.

Mauro Cherobim.  Mestre e Doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e Livre-docente pela Unesp - Universidade Estadual Paulista.





[1] Este texto foi publicado (por solicitação) no jornal O Povo de Fortaleza (CE) em dezembro de 2007.