quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A elite dirigente do governo Lula (convite à leitura)

Quando desenvolvia pesquisas no Amazonas, ao ler o Plano de Desenvolvimento da Amazônia surpreendia-me algo que não sabia explicar no seu discurso. Era algo que “não batia” com o Governo Médici, considerado um dos mais duros do regime militar. Lendo e relendo, descobri. Era um discurso marxista. Ou seja, os autores do planejamento da Amazõnia tinham uma formação marxista. Hoje é uma observação e uma preocupação sem sentido, mas não naquele momento.

Na continuidade do trabalho, junto com o meu papel de diretor do Campus Avançado de Humaitá, tinha contato com muitos técnicos do governo, desde alunos das escolas de aperfeiçoamento de oficiais, da escola de comando e Estado Maior do Exército, da Escola Superior de Guerra, sentia haver um livre pensar.

Quando o General Frota teve a sua tentativa de golpe frustada no /governo Geisel, houve uma declaração sua de que o “MEC estava cheio de comunistas”. Comentou-se na época que Nei Braga, então Ministro da Educação, rebateu afirmando que poderiam ser comunistas, mas eram bons funcionários.

Nós, aqui da planície política brasileira, vemos os governos nas pessoas do seu Presidente ou dos seus governadores. Não sabemos nada além dos seus Ministros (ou Secretários dos Estados federados). Quem ocupa os cargos de terceiro escalão em diante? Eventualmente tomamos conhecimento de um ou de outro, mas logo desaparecem nas brumas da administração federal (e/ou estaduais).

Maria Celina D’Araujo desenvolveu uma pesquisa para resolver este problema. Ou melhor, identificar esta elite dirigente, no caso do governo Lula. O seu trabalho abrange o governo Lula até 2007. Promete fazer o mesmo com o governo Fernando Henrique Cardoso.

Além da promessa da Autora em repetir os seu trabalho no governo FHC, provavelmente motive trabalhos do governo militar, que parece ter sido onde se deu início à tecnocracia que a Autora a chama de elite dirigente.

Na eventualidade de José Serra sair vencedor destas eleições terá que governa com esta mesma elite, que a Autora identifica como “um grupo altamente escolarizado, com experiên­cia profissional, proveniente em sua maioria do serviço público, mas também com fortes vínculos com movimentos sociais, par­tidos (PT), sindicatos e centrais sindicais (CUT)”.

Passo a palavra à autora:

Esta é uma pesquisa inédita sobre o perfil da elite dirigente do país no âmbito do Poder Executivo nacional. Trata-se, como se poderá ver, de um grupo altamente escolarizado, com experiên­cia profissional, proveniente em sua maioria do serviço público, mas também com fortes vínculos com movimentos sociais, par­tidos (PT), sindicatos e centrais sindicais (CUT). Não se contrapõe sindicalização a competência profissional, nem petismo a respon­sabilidade pública, apenas se atesta que essa relação está dada e se manifesta de forma expressiva no governo Lula. Não há traba­lhos no Brasil que analisem os efeitos das altas taxas de sindicalização e de partidarização entre os funcionários públicos sobre a qualidade do funcionamento da máquina pública. Da mesma forma, não há estudos sobre as profissões e a divisão social do tra­balho na esfera de governo. Esta pesquisa avança nessa direção.

Ao contrário do que ocorre em países mais desenvolvidos, o Brasil é pobre em pesquisas sobre a composição, o perfil e as funções de sua elite dirigente no âmbito administrativo fede­ral. Pouco se estuda sobre ela, pouco se sabe sobre suas carac­terísticas educacionais, profissionais e, principalmente, sobre seus aspectos organizacionais e vínculos associativos e políticos.

Este livro é parte de uma pesquisa que se propôs conhecer o conjunto de pessoas que chegou ao topo do Poder Executivo a partir de 2003, quando se inicia o primeiro governo Lula. Esse grupo é integrado, de um lado, pelos ocupantes dos cargos de Direção e Assessoramento Superiores (DAS) níveis 5 e 6, e dos cargos de Natureza Especial (NES), entre os quais se incluem secretários-gerais de ministérios e outros servidores graduados, responsáveis pela gestão pública. A esse conjunto de servidores, que estão imediatamente abaixo dos ministros, damos o nome de dirigentes públicos. Além disso, examinamos o perfil dos sucessivos ministérios desde o início da Nova República em 1985. Em todos os casos, investigamos as origens sociais, víncu­los partidários, econômicos, sindicais e associativos das pessoas identificadas.

Não por acaso, esta pesquisa ressentiu-se da fala dados oficiais, organizados ou não, e de análises sistematizadas sobre o tema. Evidenciou ainda a instabilidade nos procedimen­tos e normas para o preenchimento desses cargos no decorrer de toda a Nova República, bem como o precário monitoramen­to parlamentar e, portanto, da sociedade, o que indica fragilidades nos controles sobre a máquina pública.

Verificamos que é alta a presença de funcionários públicos entre os ocupantes dos cargos de DAS, mas concluímos também que ser funcionário público não limita a militância social e política. Ao contrário, nosso estudo revela que os dirigentes vin­dos das carreiras públicas têm fortes vínculos com movimentos sociais, partidos, terceiro setor, academia e, em especial, com sindicatos. Não se trata, portanto, de um conjunto de "técnicos desinteressados", mas sim de um grupo de cidadãos com níveis de participação e de inserção política e social muito acima dos que são praticados pela média da sociedade brasileira.

Chamou a atenção o alto nível de filiação a sindicatos e ao PT. Temos fortes razões para supor que essa participação tende a ser alta em outros governos, posto que a interface do PT e da CUT com o funcionalismo público é histórica, e que essa é uma categoria com níveis muito altos de sindicalização. Assim, inde­pendentemente da filiação partidária do presidente, há grande probabilidade de encontrar entre os dirigentes provenientes do setor público uma grande massa de sindicalizados e de petistas. Pode-se por isso supor que, mesmo em um governo não petista, a máquina pública irá refletir essa tendência.

Não se trata de contrapor sindicalização a competência profissional, nem petismo a responsabilidade pública, apenas de atestar que essa relação existe e que, segundo nossos dados, parece ter aumentado no governo Lula. Não conhecemos traba­lhos que analisem no Brasil os efeitos de altas taxas de sindica­lização e de partidarização entre os funcionários públicos sobre a qualidade do funcionamento da máquina pública. O PT tornou-se governo em 2003, e nesse momento houve, de forma inédita, uma confluência entre governo, movimento sindical, movimento social e funcionários públicos ideologicamente mobilizados e sociologicamente corporativos. Essa conclusão, entretanto, não invalida a constatação de que grande parte desses funcionários apresenta alta qualificação profissional e acadêmica.

Verificamos também neste trabalho que pouco sabemos sobre a participação das profissões dentro da divisão social do trabalho na área governamental. Tivemos a surpresa de ver a alta incidência de cientistas sociais nos altos escalões, e ao mesmo tempo de observar como os médicos, entre todas as profissões, são os dirigentes que mais laços apresentam com a sociedade civil e com diversas formas de associativismo político e social. São, sem sombra de dúvida, o grupo profissional mais organizado de nossa amostra. Isso tem impacto sobre as políti­cas de saúde?

Notamos também que de maneira geral nossa amostra revela um grupo de pessoas que ascendeu socialmente em relação a seus pais, evidenciando as possibilidades de mobili­dade na sociedade brasileira. Da mesma forma, constatamos que a composição sexista e étnica desse grupo, bem como sua extração regional, expressa as gritantes desigualdades do país. Esse é um microcosmo que mostra a concentração do poder em mãos masculinas, brancas e oriundas em grande parte da região Sudeste.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Eleitores ocultos da jihad brasileira

Eleitores ocultos da jihad brasileira

Eles votam corporativamente e sem liberdade, por motivos religiosos e não políticos

02 de outubro de 2010 | 17h 46

José de Souza Martins - O Estado de S. Paulo

Um pastor manda de Nova Iorque aos crentes de sua numerosa e obediente igreja evangélica recomendação para que votem na candidata oficial. Um bispo católico publica declaração recomendando aos fiéis que não votem nela. Um pastor de importante igreja protestante lança apelo para que os adeptos de sua igreja votem na candidata não oficial. Um frade católico há muito declara que espera que a candidata oficial ganhe a eleição e a oposição nunca mais retorne ao poder. Se é para a oposição nunca mais voltar ao poder não se trata de eleição, e sim de nomeação. Estamos em face do eleitor oculto, o das religiões, que vota corporativamente e sem liberdade, por motivos religiosos e não por motivos políticos.

A questão política como questão religiosa, no Brasil, se propõe desde a Proclamação da República e da separação entre o Estado e a Igreja. Bispos e padres deixaram de ter status similar ao de funcionário público e a Igreja deixou de ter privilégios de repartição pública. O caráter missionário da atuação católica foi largamente beneficiado pela cessação da tutela, dando-lhe a oportunidade de, pela primeira vez em nosso País, fazê-la Igreja livre e profética.

A Igreja Católica, porém, aproveitou mal a possibilidade involuntariamente aberta pela República do ideário positivista dos militares que a proclamaram. Do mesmo modo, a democracia da pluralidade religiosa não consolidou essa premissa básica do Estado moderno entre nós, como se esperava e era necessário. Os protestantes e as outras denominações religiosas foram tímidos na consolidação da democracia nascente e na defesa do Estado não confessional.

Politicamente marginalizada durante toda a República Velha, que era de inspiração positivista e anticlerical, preparou-se a Igreja nesse período para a Restauração Católica, fundada num ideário de direita e em valores da tradição conservadora. Significativamente, e por isso mesmo, lograria o status de "religião da maioria do povo brasileiro" no governo Vargas. Um intercâmbio claramente informado pelo populismo que nascia. O protestantismo se difundiu devagar, à margem da política e do poder, pesando sobre ele o informal veto católico. Poucos notaram, até que um presbiteriano, Café Filho, sendo vice de Getúlio Vargas, assumira a Presidência da República com o suicídio do presidente em 1954. Era a via silenciosa da ascensão política dos protestantes.

O golpe militar de 1964 teve a decisiva participação católica com as Marchas da Família com Deus pela Liberdade. No entanto, um fato insólito se passou, revelador das grandes mudanças sociais que haviam ocorrido no País: diversos protestantes, especialmente presbiterianos, ascenderam em diferentes momentos do regime aos governos dos Estados, no Rio de Janeiro, em Pernambuco, no Pará, na Guanabara e mesmo em São Paulo, indiretamente, quando Laudo Natel, ligado ao Bradesco, de Amador Aguiar, presbiteriano, assumiu o governo com a cassação de Adhemar de Barros e nomeou um secretariado com notória presença protestante. A escolha do luterano Ernesto Geisel para a Presidência da República confirmou essa tendência do regime militar. A mudança de orientação da Igreja Católica em relação à ditadura, cuja instauração apoiara, e a hostilidade entre o Estado e a Igreja, nesse período, ganham clareza nesse cenário de fundo religioso.

É nesse quadro adverso e na consequente repressão que alcançou setores engajados da Igreja, até mesmo bispos, que sua atuação política evoluiu na direção do estímulo aos movimentos populares, a ação política orientada contra as incongruências do Estado, sobretudo o descompasso entre o legalmente possível e o politicamente realizado. Nesse legalismo antagônico ao Estado autoritário os setores mais ativos da Igreja não tiveram outra alternativa para afirmação dos seus valores conservadores, dado que o espaço político de direita, de sua atuação mais coerente, fora bloqueado pela tendência anticlerical dos militares e capturado pelos evangélicos. Sobrou-lhes constituírem sua militância no espaço residual de oposição à ditadura. O rapto ideológico do vocabulário de esquerda deu um revestimento moderno ao programa conservador e nem por isso menos transformador de que a Igreja no Brasil se tornou protagonista.

Nem os católicos nem os evangélicos conseguiram formular uma concepção democrática de política, no sentido de resguardar as respectivas religiões contra o monolitismo ideológico a que tende a política partidária. Não conseguiram propor suas religiões, na política, como religiões universais e pluralistas, irredutíveis ao partidário. O que possa lhes parecer um êxito político-partidário, nestas eleições e em outras precedentes, é na verdade um fracasso religioso, sobretudo no fato de que tendo se proposto como instrumentos do aparelhamento religioso-ideológico do Estado, tornam-se inversamente aparelhos da política e do próprio Estado. No altar das ambições de poder de sua guerra santa, sacrificam a missão profética das igrejas e minimizam a grande função histórica e libertadora que poderiam e deveriam ter na miséria moral e política da sociedade contemporânea.

JOSÉ DE SOUZA MARTINS, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DA USP. É AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE 'A APARIÇÃO DO DEMÔNIO NA FÁBRICA' (EDITORA 34)

Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,eleitores-ocultos-da-jihad-brasileira,618924,0.htm. Acessado em 07/10/2010.