sexta-feira, 19 de agosto de 2016

A distância social e o jogo de prestígio

Muito interessante o artigo de Antônio Fernando Pinheiro Pedro sobre o título de doutor[1]. Assunto que me leva a ler, pois além de escrever muito bem, os seus textos prendem a atenção. Como Fernando sabe, na minha profissão os meus entrevistados são, na maioria, gente simples, índios, pessoas do mundo rural e também doutores de pequenas comunidades. Muitos advogados. Era comum usarem o doutor como prenome. Costumavam tirar sarro do pesquisador. Não era para menos, depois de prosear com uma porção de caboclos e ia conversar com um doutor.

Estas considerações não são contestatórias, mas algumas informações decorrentes da minha prática de pesquisa de campo que por várias vezes me levou a situações que me mostraram o tratamento de doutor como uma forma de distância social.

Criticam muito dos doutores acadêmicos, mas eles são professores assistentes. Existe uma “escadinha”: auxiliar de ensino, professor assistente, professor assistente doutor, professor livre-docente, professor adjunto e professor titular. Na Unesp, por falta de gente titulada (no meu tempo, não sei agora), o professor livre-docente é logo “promovido” a professor adjunto. Quando um professor faz a sua livre-docência o seu tratamento é de professor doutor.

Eu aguentei os primeiros sarros dos doutores e resolvi fazer um “experimento”. Tinha um cartão de visita com o meu nome e sob ele a palavra ANTROPÓLOGO.  Mantive este cartão e fiz outro, colocando “Prof. Dr.” antes do nome. Quando era bem tratado oferecia o cartão antigo e quando alguém tirava sarro dava o cartão novo. Nas visitas seguintes passava a ser bem tratado.

Comecei a fazer pesquisa de campo quando ainda era somente graduado. Como precisamos dos entrevistados éramos obrigados ao ouvir verdadeiras “aulas”. Ouvia tudo aquilo, pois se fossemos mandar a pessoas para aquele lugar que chega até a ponta da língua, a pesquisa pode parar por falta de entrevistados. Gente “esquentada” não pode fazer pesquisa de campo.

Estas experiências tornam-nos sensíveis a esta questão. Não levamo-las para o nível social, mas como um fenômeno de relações sociais. Houve um caso de um juiz processou o porteiro do seu condomínio porque não recebeu o tratamento de doutor. De acordo com o juiz que deu a sentença, “’doutor’ não é forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado apenas quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga merecedora de um doutoramento. O título é dado apenas às pessoas que cumpriram tal exigência e, mesmo assim, no meio universitário”. Continuou na sua sentença “...que o tratamento cerimonioso é reservado a círculos fechados da diplomacia, clero, governo, Judiciário e meio acadêmico, mas na relação social não há ‘ritual litúrgico’ a ser obedecido (grifo meu)”.

Quando fui para a Amazônia dirigir um Campus Avançado do Projeto Rondon assumi um cargo de professor. Assim era tratado. Passavam outros professores por lá por períodos de uns 15 ou 20 dias. Era o único professor “de fora”  de permanência efetiva na comunidade. Passavam muitos “doutores” ligados aos governos federal e estadual, pois Humaitá era uma das sete comunidades de apoio da Transamazônica e próxima a ela havia o cruzamento da Transamazônica com a Rodovia Porto Velho Manaus. Os “doutores locais” (o Juiz, os médicos) tiram um relacionamento formal com a população local e quando tinham era de liderança. Por serem “doutores”.

Nas reuniões da tardinha, no bar da beira do rio havia a mesa dos doutores e sempre havia gente próxima da mesa para ouvir as conversar e se tornar assunto de conversa na cidade. Pela manhã, por volta das cinco horas da manhã, ainda escuro, os barqueiros, estivadores, trabalhadores braçais da prefeitura e alguns moradores de prestígio da cidade, mais o prefeito, o presidente da Câmara e algumas outras pessoas prestigiadas, reuniam-se nas escadarias do porto,  tomavam café oferecidos pelo Venturinha, proprietário do café na parte alta da escadaria. Muitas conversas ouvidas  das conversas dos doutores na tarde anterior era comentada da D.I.V.A.(Departamento de Investigação da Vida Alheia), como ironicamente os seus membros chamavam este encontro matinal. Eu era um dos membros deste encontro.

O professor, seja os das primeiras letras, seja os dos mais altos cargos acadêmicos, é professor. A legislação educacional define o processo de formação do professor, mas na longínqua Amazônia de então a maioria dos professores era formada por pessoas que, em boa parte tinha somente as quatro séries iniciais do hoje chamado curso fundamental e as suas moradias, casas de palafita, também eram a escola. Mas eram professores. Os professores “leigos”. E eu também era professor, mas um professor “do Sul” e de formação universitária.

Distância social é um conceito sociológico que mede a aproximação ou o distanciamento de posições sociais, ou status social (conjunto de normas ou regras que termina a posição que o individuo ocupa numa sociedade). Por exemplo, o porteiro, o gari, o juiz, o advogado, o médico, o motorista de ônibus, o professor, etc.

Outro dia assisti a um vídeo de uma discussão no Senado da República que mostrou uma discussão cujo foco era a “medição” do distanciamento social. Uma Senadora mandou que a advogada favorável a impeachment da Presidente afastada ficasse calada porque não era senadora portando sem alguns privilégios dos parlamentares. A advogada deu uma resposta acrescentando outros privilégios que lhe dava o direito de falar, direitos da sua função.

Manuel Diegues Jr. em um de seu artigos ensina-nos de que os seus filhos homens dos proprietários coloniais constituíam-se nos nexos com o Estado, claro que positivamente com o governo. O mais velho era o seu herdeiro na administração das suas propriedades. O segundo padre, numa Igreja parte do Estado, onde o poder rivalizava com muita força com o poder material, e assim preservando a sua potestade. O terceiro filho advogado para exercer cargos na administração colonial e o quarto filho militar. A igreja perdeu muito do seu poder, mas os operadores do direito aliam esta característica a um jogo de conceitos e valores da justiça que colocam sempre em evidência o seu poder em vários setores da sociedade.

O título de “doutor” que lá no início falei do seu uso como prenome, faz desaparecer o nome em favor da categoria profissional. O mesmo acontece com o médico. São os “doutores”.

Disse o juiz que deu a sentença ao seu colega que processou o porteiro do condomínio que “doutor não é forma de tratamento, e sim título acadêmico”. E aqui entra o Estado: o título acadêmico de doutor foi regulamentado e os de doutor para quem fez determinados cursos de graduação não foram. Mas por costume se tornou uma forma cerimoniosa impositiva. E sempre haverá espaço para discussão. E ser chamado de doutor agrada ao ego, seja o de origem acadêmica, seja os de cursos de origem nobre.

O jogo de prestígio continua...